quarta-feira, 17 de outubro de 2012

boa noite e boa sorte

No início foi o noticiário local. Não foi há muito tempo que dezenas de páginas de jornal se dedicavam a um jornalismo de proximidade, com as notícias que são o grau primeiro da cidadania. O jardim na minha rua, a escola dos meus filhos, a segurança da minha comunidade, o governo do meu município. Foi aí que comecei, na Rádio Voz de Alenquer, e por aí prossegui na Agência Lusa. Quando fazia a cobertura de Lisboa, encontravam-se em cada Assembleia Municipal e reunião de Câmara os jornalistas de cada meio, de todos os jornais, às vezes das rádios, de vez em quando das televisões. Mas dos jornais, sempre. Éramos muitos. Hoje o noticiário local é uma quase inexistência. Em Lisboa, a cobertura continuada e sistemática (a única que resulta porque tem memória, acumula conhecimento e fiscaliza) está reduzida à Lusa e ao Público.


As notícias sobre os problemas do bairro e da comunidade foram pontapeadas das páginas impressas, dando lugar, muitas vezes, ao novo-riquismo arrivista de histórias sobre esplanadas e restaurantes de sushi. Isto aconteceu em contraciclo com a generalização nas autarquias de instrumentos como os orçamentos participativos e a organização de movimentos cívicos.

O desinvestimento no noticiário local é uma imagem que ilustra o que anda sempre junto: jornalismo e pluralidade, informação e democracia.

As democracias mais avançadas do mundo são aquelas onde as tiragens dos jornais são maiores. Todos os países nórdicos têm tiragens brutais de jornais e, não pode ser coincidência, muito jornalismo local. A Islândia, o país onde uma auditoria à dívida pública se tornou um best-seller, é o país do mundo com maior tiragem de jornais.

Estar informado é condição primeira para se ser melhor cidadão, para se exigir mais da classe dirigente, para que uma comunidade se constitua, vigilante e fiscalizadora, numa força responsável e responsabilizadora.

Cresci e quis ser jornalista num país que parecia querer ser outra coisa e o indicador dessa força era a qualidade do seu jornalismo. A qualidade da TSF, o furacão que foi início da SIC e que contaminou todo o jornalismo televisivo, a Grande Reportagem de Miguel Sousa Tavares, o Público.

O Público. O jornal que o meu Pai começou a ler depois do fim de “O Diário” (é muito significativo que ele tenha passado de um para outro, porque isso aconteceu porque o jornal se impôs pela sua qualidade quando o meu Pai deixou de ter um diário com que ideologicamente se identificava). O Público. O jornal que tinha um caderno local. O Público. O jornal que enviava repórteres para a Guerra. O Público. O jornal que tinha um grafismo inovador e bonito. O Público. Onde eu lia as crónicas do Eduardo Prado Coelho e da Ana Sá Lopes. O Público. Onde eu quis estagiar (e estagiei) porque era o melhor. O Público. O jornal onde na semana passada foi decidido um despedimento coletivo. O Público. O único jornal efetivamente de referência em Portugal.

Quando cresci e quis ser jornalista não pensava na Agência Lusa. As agências são martelos de humildade para os jornalistas. Porque dão as notícias mas não dão protagonismo e quando pensamos no que queremos ser também queremos o ‘glamour’ e o ‘frisson’. Vá, admitam. Só que quando decidi o meu estágio curricular foi para lá que quis ir porque achava que era onde podia aprender. Assim foi. E o que aprendi, até hoje, quando as sete da noite escrevi a última notícia do dia e fechei o computador, não tem medida. A invisibilidade de uma agência é só mesmo para adolescentes e pessoas distraídas. A Lusa está em todo o mundo, particularmente no Lusófono, a projetar a língua e cultura portuguesas, a informar sobre Portugal e as comunidades portuguesas. Mas a Lusa também está em todo o país, indo aos lugares e falando com as pessoas e as instituições que sem ela não teriam literalmente voz e imagem.

Por isso, o corte de mais de 30 por cento na Agência Lusa previsto no Orçamento do Estado para 2013 coloca não só em causa muitos postos de trabalho mas ameaça gravemente a pluralidade, ao pôr em risco a cobertura noticiosa geográfica e temática que a Lusa oferece aos seus clientes. Os clientes são os outros meios, cada vez mais ameaçados por dificuldades financeiras, que têm cada vez menos jornalistas.

Os trabalhadores da Lusa estão em greve na quinta, sexta, sábado e domingo. Na sexta-feira, a greve coincide com a greve do Público.

Fazer uma greve não tem graça nenhuma. Não só porque é duro financeiramente para os trabalhadores, mas também porque é a última forma de batalharem pelos seus postos de trabalho e pela manutenção do serviço público que a agência presta. Sentido o chão ruir debaixo dos seus pés, os jornalistas (e todos os trabalhadores da agência) estão a bater-se para que a informação continue a chegar a quem dela precisa. O país.

Boa noite e boa sorte.

8 comentários:

  1. Ah... so pode ser falha minha... nao conhecia este teu espaço.

    "A invisibilidade de uma agência é só mesmo para adolescentes e pessoas distraídas".

    Gostei. Fiquei fã. Vou cá voltar.

    Beijinhos

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    1. Sou uma mocinha discreta. :) Aparece sempre, mi casa es su casa :)

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  2. Cara Ana. Li o seu texto até para além de de emocionar. Fiquei íntimo deste seu escrito em muito pouco tempo e isso é raro. Fui, talvez, o mais novo dos jornalistas de "o diário" que o seu pai lia. Com o tempo, também morreu esse meu sonho de jornalismo que é o seu. Fui e sou leitor do "público" desde a primeira edição. Tive e tenho bons amigos profissionais na Lusa. Não a conheço, mas veja só os estragos que a sua crónica me fizeram. Eu quero é agradecer-lhe por isso, Ana Clotilde Correia. E desejar-lhe... boa noite e boa sorte.

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    1. Muito obrigada. Comovida estou eu, com este seu comentário. Um abraço.

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  3. Oh, minha querida... Brilhante és tu que vês as coisas com a nitidez focada no essencial. Beijo muito grande.

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  4. "As agências são martelos de humildade para os jornalistas". Não conseguiria expressá-lo melhor. Todo o texto está excelente, adorei. Beijinhos, Marta Duarte

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